sábado, 1 de dezembro de 2007

Sonho no sofá

O menino agachado no carpete há horas. Não larga seu bonequinho, uma imitação de um soldado de guerra, com extravagâncias vendidas separadamente e uma metralhadora que não se encaixa a mão do tal boneco por ela ser de um outro, um outro muito maior. As crianças já começam por aí a ver o quanto o mundo discrimina. Já vêem que a maioria das merdas não se encaixa desde cedo. Com a bendita arma posta de qualquer jeito, abruptamente socada, quase quebrada, segue a aventura na montanha mais perigosa que a criança já vira: o sofá.
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Hoje quando olho para um sofá, além do enorme buraco, marca de anos de escoro servidos à minha preguiça, vejo só um sofá, ora bolas! Um treco, um móvel, mais uma armação de estofado e tecido pra tirar meu sono. E se eu vejo assim, como posso um dia ter visto uma série de perigos e aventuras me passando por John McGabowski, veterano do Vietnã, que nem consegue segurar a porra da metralhadora direito. Na Rússia, na Segunda Guerra, havia mais combatentes do que metralhadoras. Uma por dupla. O outro segura as balas. O homem sempre dá um jeito. Nosso grau de miopia só tende a aumentar.
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Puta que pariu, ‘evoluir’ é isso? É olhar pra um sofá e ver madeira a prestações, com uma enorme vala de ociosidade enquanto que meu sobrinho, quando vem me visitar, jura de pés juntos que aquilo é a base pára-quedista n° 15 do 3º regimento de pára-quedistas motorizados e salta sem parar os 40 centímetros que afastam o sonho da realidade.
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Com um olho na tv e outro sobre o moleque, nada resta a não ser ficar estagnado, vendo aquele garoto acabando com os tendões que um dia lhe farão tanta falta, caso queira ser um exímio corredor, ou dançarino de passo doble, claro. Era o meu passo doble. Era eu querendo ganhar a São Silvestre. Era eu fodendo com os meus tendões e nem tendo idéia de que porcaria era essa.
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Onde eu fui parar?
Numa situação tediosa. Isso resume essa fase de iniciação da vida adulta. Paramos de sonhar. Fodemos nossos sonhos, sendo que alguns eram bem legais, tinham algum fundamento e possibilidades de realização sem maiores riscos de vida, assim como a conhecemos. Mas, mesmo assim, trocamos os sonhos por estabilidade. Não, por comodidade mesmo. Assim como sentar no sofá e se espreguiçar. Cômodo. Estabelecemos “metas”, “objetivos”. Não sonhos.Trocamos o verde da esperança, pelo verde da bufunfa, do dinheiro sujo! Ser pobre de rico. Ser pobre de rico é o que há. É o que há.
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Num mundo em que ganhar na mega sena mudaria toda a sua vida, você não pode esperar muito dela, já que tem um preço, imutável, a podridão. Tudo o que fica parado por muito tempo acaba por apodrecer. Essa situação tediosa a qual é 'evoluir' nos apodrece a cada dia. A criança não. Ela vive pulando os 40 centímetros da sua base pára-quedista n° 15 do 3º regimento de pára-quedistas motorizados e, assim, os parasitas comedores de sonhos nunca conseguem fixar-se nela.
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Já os gordos de 20 anos, com barba por fazer a mais de 20 dias, e que deixam enormes rombos no sofá, enquanto assistem o dvd pirata do momento, eles realmente não têm anticorpo algum para defender-se. O banquete das parasitas do apodrecimento está aberto! Façam suas apostas!
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Quantos sonhos vamos destruir hoje? Quantos astronautas irão se tornar contadores? E os jogadores de futebol? Advocacia neles! As professoras se tornarão administradoras. As enfermeiras entrarão no mundo da moda. Onde estão os engenheiros desse país? Talvez eu ache alguns no funcionalismo público. Os que não conseguirem, vamos dar-lhes um belo posto de atendente de loja ou vendedor. Isso. Vendedor é a melhor forma de apodrecer essa gente. Tirar o brilho inocente dos olhos deles, e no lugar, por este belíssimo olhar de hiena. Rindo sem vontade. Atrás de dinheiro, já que carne não tem muito valor no mundo de hoje (em partes). Só queremos o dinheiro que está na conta de vocês, mesmo não o tendo. Faça com que corram, derrubem, caiam, matem, por dinheiro! Dinheiro sujo! Ser podre de rico! Ser podre de rico é o que há!
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Contudo, tomem cuidado para que pareça natural e considerem a coisa toda como uma fase natural do processo de amadurecimento do ser humano pertencente a um sistema complexo capitalista que, na verdade, é muito simples e blá, blá, bosta!
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(Enfim, os parasitas riem. Deliciam-se em nossas carnes cansadas, estiradas sobre o sofá, pesando mais em uma parte que outra. Sem força alguma, sem brilho nos olhos, a não ser o de hiena velha fedorenta)
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Tudo isso é de um pessimismo enfadonho. Obviamente não diz respeito à opinião dos autores. Nem mesmo a dos leitores. Pensando bem, nada diz, uma vez que ninguém se importa, logo não há como se sentir culpado. É uma boa linha de pensamento. Não se importar, para não se sentir culpado. Talvez isso resuma, de maneira estranha o texto acima. Não se importar, fingir que não vê, para não sentir a culpa e o remorso de ser um suicida, tirando a própria vida dia após dia. Sacam?

7 comentários:

Ket disse...

Insisto em dizer que o texto ficou muito bom. Começamos bem.

Folhasolta disse...

Insisto em gritar que o texto ficou muito bom. (já que sou a besta, só emito urros guturais)
Começamos bem.

Ágatha Ludwig disse...

muito bom mesmo ^^
;*~

the beaty and the beer disse...

Só para salientar e nao esquecer. Quinta-feira, antes de lapidar o texto, passei uma boa parte da noite conversando com o Rafael e o João, logo algumas idéias foram refletidas no texto. A dos soldados e a do capitalismo.

the beaty and the beer disse...

João/ensinamos melhor oq mais temos q aprender! disse:
belo texto... gostei bastante da leitura...

the beaty and the beer disse...

João:
"Já os gordos de 20 anos, com barba por fazer a mais de 20 dias, e que deixam enormes rombos no sofá, enquanto assistem o dvd pirata do momento"

hauhauhauahauhuahauhauhauauhauahuah

e quase tive um tréco ao ler isso... me senti descrito.

o texto é muito bom...

e essa parte aquí tbm é ótima:

"Quantos sonhos vamos destruir hoje? Quantos astronautas irão se tornar contadores? E os jogadores de futebol? Advocacia neles! As professoras se tornarão administradoras. As enfermeiras entrarão no mundo da moda. "

pessimista ao extremo, porém bom o texto...

the beaty and the beer disse...

LUIS FERNANDO:
ah, quanto ao seu trabalho, ficou mto bom, me lembrou um pouco de As Meninas, da Lygia fagundes Telles mas tinah algo bem diferente, algo só seu. bem, é isso, até a vista beauty, aguarde pelo Locke! abraço!